O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), admitiu em março deste ano que as joias recebidas pelo governo eram bens de interesse público. Ele também estava ciente de que, mesmo se esses itens fossem legalmente parte do acervo pessoal do então presidente – o que não era o caso, já que não eram personalíssimos -, a União teria o direito de preferência na aquisição caso fossem vendidos.
Essa revelação veio à tona por meio de mensagens trocadas entre Cid e o advogado Fábio Wajngarten, que faz parte da equipe de defesa de Bolsonaro no caso das joias e serviu como secretário de Comunicação durante o mandato. As mensagens do celular de Cid foram obtidas pela coluna de Juliana Dal Piva, no UOL.
A conversa ocorreu em 5 de março, após a divulgação, pelo Estadão, de que o governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente colar e brincos de diamante da Arábia Saudita. Cid compartilhou com Wajngarten a matéria que revelava a tentativa de entrada desses itens no país, escondidos na mochila de um militar. A resposta do advogado foi: “Eu nunca vi tanta gente ignorante na minha vida.” Cid acrescentou: “Difícil mesmo. O pior é que está tudo documentado.”
A conversa entre os dois continuou, abordando outros itens recebidos pela Presidência, mas que não foram encaminhados ao acervo da União – o que seria correto de acordo com a legislação brasileira. Cid demonstrou ter conhecimento dessa ilegalidade, pois enviou a Wajngarten uma série de mensagens sobre as determinações legais para o recebimento e tratamento de presentes pela Presidência.
Entre o conteúdo enviado por Cid e revelado pela coluna de Juliana Dal Piva, está uma imagem da Lei 8.394, de 30 de dezembro de 1991, que trata da preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Na imagem enviada pelo militar, um círculo verde destaca o trecho: “em caso de venda, a União terá direito de preferência.”
Há várias irregularidades nesse trecho que evidenciam a ilegalidade das ações de aliados do ex-presidente. Embora não fosse público na época, a Polícia Federal apontou em agosto que Bolsonaro, Mauro Cid e outros dois assessores “atuaram para desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente para posteriormente serem vendidos no exterior”.
A mesma lei enviada por Cid acrescenta que itens do acervo pessoal do presidente “não poderão ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União”. No entanto, a investigação da PF aponta vendas no exterior sem qualquer direito de preferência ou manifestação expressa da União.
Além disso, como já reportado pelo Estadão, os itens recebidos por Bolsonaro nem sequer poderiam fazer parte de seu acervo. A principal referência sobre os critérios para presentes do exterior é um entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2016, que determina que presentes recebidos em agendas e viagens oficiais devem ser incorporados ao patrimônio da União. As únicas exceções são “itens de natureza personalíssima”.
O TCU cita como exemplo “medalhas personalizadas, bonés, camisetas, gravatas, chinelos e perfumes”. Portanto, para que um presidente possa ficar com o material, é necessário que seja algo pessoal e também de baixo valor – o que não se aplica ao escândalo das joias.
O mais preocupante é que muitos desses itens sequer foram declarados, como é o caso das joias reveladas pelo Estadão em março. Os itens foram apreendidos pela Receita Federal em 2021 por terem entrado no país sem registro. A tentativa de encaminhá-los ao acervo pessoal de Bolsonaro só foi feita por Mauro Cid em dezembro de 2022, em uma última tentativa infrutífera de recuperar as joias.